Empoderamento feminino, gargalhadas inusitadas e licença de maternidade

 Abre os olhos devagar, ainda antes do despertador tocar. Lá fora está escuro, está frio. A casa em silencio oculta a actividade massiva que vai entrar em palco nos próximos minutos. Devagar ergue o corpo até ficar sentada na borda da cama com os pés a tocar no chão frio. Respira fundo.

Lembra-se vagamente, de ter passado os olhos, mesmo antes de adormecer, num post em que se falava de empoderamento feminino. Não sabe bem o que isso é e a esta hora da manhã não tem tempo para ficar a saber.



Mentalmente escolhe a indumentária do dia, calças de ganga, sapatos para a chuva - não vá o diabo tece-las. Uma camisola quente e a capa invisível de  super mulher.

Volta a respirar fundo. Empoderamento feminino, pois sim. É de certeza alguma coisa que não toca sequer no trabalho que tem com os filhos, a casa, as comidas, as compras, os quilos de roupa para secar, todas as coisas que acha que tem de fazer e o milhão de outras coisas que todos os outros sentem que ela não pode deixar de cumprir. 

O ir para o trabalho, no transito ou apertada no metro. O voltar para casa com a sensação de que o dia ainda está para começar. O mau humor incompreendido, a sua pressa constante que ninguém entende.

Sim, gostava de se sentir empoderada mas acha, acha não... tem a certeza que isso do empoderamento feminino tem algo a ver com deixar a sua marca no mundo, fazer diferente, fazer melhor. E fazer história é um feito reservado para mulheres de uma raça diferente da nossa, ou pelo menos, da dela.

Acha que o mundo muda e evolui à custa de uns quantos sobre dotados que se destacam da maioria. Mas esquece-se que as grandes conquistas são muitas vezes originadas por uma atitude comum de um cidadão ainda mais comum.

Numa fracção de segundo pensa que talvez, que talvez, fosse boa ideia, hoje, só por hoje deixar a capa pendurada no cabide. Ser só ela, por um dia. Sem ter de se desdobrar em mil. E encarnar personagens que às vezes nem conhece. Está tão cansada, com seu dia a dia rotineiro que tem vontade de soltar uma gargalhada a propósito dos seus devaneios sobre o empoderamento feminino. Tem vontade de rir a bandeiras despregadas mas engole o riso no ultimo minuto, não vá acordar o marido ou os miúdos, coitadinhos ainda é ,muito cedo para isso.

Depois, olha pela janela, para as luzes de outras casas ao fundo e uma alfinetada de tristeza aperta-lhe o coração. Será isto a vida?

Sente-se triste e sozinha porque não se lembra dos milhares, milhões de outras mulheres que num ritual inviolável todos os dias colocam capas idênticas nos ombros e levam a vida para a frente. 
Sente-se vazia porque ainda não percebeu que são os super poderes de cada uma delas - destas mulheres que são  fadas, feiticeiras, mulheres maravilha - que colocam o mundo em orbita e fazem a vida girar no sentido certo.

Pensa que talvez às vezes se queixe demais mas sabe que na maior parte dos casos todo o seu esforço não chega a ser sequer devidamente reconhecido. Tenta jogar as escondidas com a memória e lembrar-se de qual foi o momento em que a energia lhe começou a escorrer por entre os dedos, o dia em que se olhou ao espelho e com surpresa viu a primeira ruga a chegar-se à frente.

Mas na fracção de segundo seguinte ergue a cabeça e coloca de forma majestosa a capa magica sobre os ombros. A casa e a rua começam a acordar. O silencio desvanece-se e os primeiros raios de sol entram pela janela a dentro. 

Sente-se desamparada porque nunca ouviu a história de uma mulher chamada Bridget Peixoto (uma americana com ascendencia portuguesa), que exactamente igual a ela foi capaz de mudar a vida de todas nós.

Bridget Peixoto era mulher banal, igual a todas nós que fez aquilo que as mulheres têm tanta fama de fazer: reclamar.

Ela reclamou e  mudou o rumo da vida de todas e cada uma de nós.

Talvez ela seja mãe do empoderamento feminino, porque empoderar uma mulher não é nada mais, nada menos do que dotá-la de conhecimento, recursos e competências para que ela possa libertar, desenvolver e concretizar o todo o seu potencial.

Mas na altura tão pouco se falava em feminismo quanto mais em empoderamento feminino. Corria o ano de 1931 e Bridget
Peixoto era professora numa escola do Bronx. Engravidou, deu à luz e foi despedida. A causa do despedimento devidamente justificada e enquadrada nos padrões da sociedade da época. Ou seja: foi despedida "por negligencia do dever com o propósito de dar à luz". Ou trocando por miúdos, naquela altura das duas uma ou trabalhava ou era mulher casada e com filhos. As duas missões em simultâneo eram incompatíveis. E inaceitável era também que uma mulher faltasse ao trabalho por estar gravida ou ter acabado de dar à luz.

Cem anos depois, a maior parte de nós, e talvez não seja uma parte ainda tão grande assim, tem direito a pelo menos 5 meses de licença de Maternidade... ou parental como gostam de lhe chamar. Mas poucas sabemos como isso sequer chegou a acontecer.

E como ignoramos que mulheres banais como Bridget Peixoto, são capazes de de feitos extraordinários com as suas ainda mais banais atitudes, vamos-nos encolhendo nas nossas conchas e achando que somos causas perdidas, que o sucesso só aparece ao virar das esquinas dos outros e que logicamente fazer historia ou mudar curso da humanidade não é de todo para nós.

Trazer um ser humano ao mundo é por si só um acto hercúleo o suficiente. 

Saber apenas que cada uma de nós tem esse potencial devia ser o suficiente para atribuir e não para tirar confiança. 

O suficiente para que a nossa voz se levante mais alto ao em vez de passar a sussurrar baixinho para não perturbar a paz implantada ou engolir risos inusitados.

O quanto baste para sabermos mesmo que esteja para além do alcance das nossas mãos mudar o curso da humanidade, escrever a nossa própria história não depende de mais ninguém.

 A não ser de nós. Porque as nossas feridas são a nossa força.





Aprendi com a primavera a deixar-me cortar e voltar sempre inteira.
 
Cecília Meireles






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